14 de ago. de 2008

A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS

Existe uma vida secreta nas palavras que é revelada apenas quando outras palavras nos vêm preencher os vazios. Hannah é uma tímida operária fabril surda e reservada que é obrigava a tirar um tempo de férias por revelar problemas de adaptação e de convivência com os outros operários.

Hannah desliga o aparelho auditivo que a aproxima do mundo e nesses longos momentos de ausência dos outros encontra a paz, parecendo aos outros que o isolamento a que se vota é uma afronta que lhes dedica - mais que uma intolerância perante o silêncio, é uma incompreensão perante a doce ausência das palavras em excesso. E Hannah usa as palavras como uma torneira mal fechada: gota a gota, comedida, sóbria e certeira.

Nesse seu mundo silencioso Hannah encontra o lugar perfeito quando, estando de férias junto à costa, surge-lhe a possibilidade de trabalhar como enfermeira de um operário ferido e cego provisoriamente, numa plataforma petrolífera. Este local é o poiso de homens perdidos e todos eles silenciosamente presos a palavras não ditas e memórias camufladas. Existe o cozinheiro italiano que para combater a monotonia dedica cada dia a um país diferente cozinhando, vestindo-se e ouvindo música desse país - pelo que é incompreendido pelos outros que lhe pedem um simples cheeseburguer. Temos aqui o biólogo que estuda o batimento da ondulação na plataforma e que se dedica à investigação da vida das ostras. Temos o amor entre dois homens com família lá fora que se vai revelando. E temos o homem na cama - um magistral Tim Robbins - queimado e provisoriamente cego que vai desvendando aos poucos toda a sua história enquanto tenta descobrir a de Hannah.

Hannah encaixa no perfil de silêncio e de inquietude que povoam esta plataforma repleta de fantasmas - os seus deleites secretos com a comida preparada pelo cozinheiro são para ela um pecado que aprecia a só, salvando-a um pouco mais - são pequenos passos para a sanidade que vai desbravando, ela que é louca por maçãs e paranóica por barras de sabão.

Este filme de Isabel Coixet, de representações acutilantes, de personalidades envolventes, de uma história dramática que se nos vai surgindo, de uma fotografia e filmagem sóbria e serena é uma bela lição sobre a relação entre pessoas que se vão descobrindo e absolvendo, mesmo perante si.

* Visto na mostra de cinema espanhol, Cinema São Jorge, LX - Julho de 2008

3 comentários:

Ana disse...

Acabei de ver o filme.
As imagens são realmente serenas e calmas comparativamente às que fazem parte da história de Hannah. De todas as personagens do filme, só Hannah me faz pensar e pensar: quantas "Hannah"s foram e serão esquecidas... Para quê guardar testemunhos? "Para que a nossa memória não traia a memória dos" que já viveram.

rah pha disse...

é incrível esse momento quase final, não é? livros e blocos, prateleiras cheias de testemunhos necessários! achas que na vida real eles ficavam juntos? eu acho que não - esse foi um olhar romântico e lírico ao filme que termina bem e que não representa de todo a vida - mas saímos sorrindo dentro dessa impossibilidade. bj

Ana disse...

Na vida real, juntos? Nao. Aliás, na vida real ela nem tinha subido até à plataforma petrolífera. O maravilhoso das histórias é isso mesmo: darem-nos a entender que tudo é possível e assim continuarmos a sonhar!